quarta-feira, 20 de abril de 2011

Quarta-feira Santa - Emil Bock

Em realidade, a Semana Silenciosa só o é a partir da sua metade. No domingo de Ramos, estremece o ambiente psíquico de toda a cidade; na segunda- feira são derrubadas as mesas dos vendedores e cambistas no templo na terça-feira, golpes de espada são trocados na luta espiritual entre o Cristo e seus adversários. Somente a última parte da semana é invadida pelo mistério do silêncio, embora seja um silêncio cósmico-dramático aquele que, na noite de quinta-feira, envolve a mesa da ceia e, mais ainda, aquele que cerca a morte do Cristo na cruz, e o que reina sobre o sepulcro. 
Lembremos apenas o terremoto que parte das profundezas da terra na sexta-feira santa. Entretanto, a parte do Cristo nos acontecimentos passa ao silêncio na segunda metade da semana enquanto na primeira metade ainda estava totalmente envolvida no ruidoso primeiro plano. O dia que chamamos de “Mittwoch” por representar o meio (Mitte) da semana, mas que, em outras línguas, é designado como dia de Mercúrio, conforme o efeito planetário que o rege, dia mercurial ou do movimento vivo, este dia estabelece de maneira significativa a transição entre os dias ainda não silenciosos da Semana do Silêncio e os dias em que se entretece o crescente mistério do silêncio do Cristo.
Ao cair da tarde deste dia, destaca-se uma cena que já teve suas similares nos dias anteriores, mas agora, no dia do meio e do equilíbrio, alcança um significado especial. O Cristo voltou do movimento da cidade para o local tranqüilo além do Monte das Oliveiras, voltou para Bethânia. Encontra-se entre aqueles aos quais está particularmente ligado. Os amigos lhe preparam uma refeição. Nas outras noites também houve refeições, mas hoje é como se já incidisse na sala um prenúncio da luminosidade que incidirá sobre a ceia da noite seguinte. Há em meio aos comensais como que um presságio da Santa Ceia.
A aldeia de Bethânia, por tranqüila que seja, foi, ainda há pouco, o cenário daquele acontecimento que significou o sinal para a luta: a ressurreição do Lázaro. Lázaro é um dos comensais. É ele que, na noite seguinte, conforme descreve o Evangelho, estará encostado ao coração de Jesus. É ele que, no círculo da Santa Ceia, está interna e externamente mais próximo do Cristo. Entre os comensais, há também duas mulheres designadas pelo evangelho de João como irmãs de Lázaro, Marta e Maria Madalena. 

Ingressaram através de algumas circunstâncias do destino neste círculo que é mais uma família espiritual do que uma família por laços de sangue. Na vida de cada uma dessas três pessoas, há um acontecimento que provocou uma transformação fundamental. Para Lázaro, foi a ressurreição do sepulcro na rocha, a grande libertação do espírito de João para seu vôo-de-águia pelas alturas.
Para Maria Madalena foi um acontecimento mais remoto, designado pelo Evangelho como um exorcismo. Foi curada de uma trágica e fatídica alienação e experimentou a libertação e purificação de sua alma. No caso de Marta também ocorre um evento semelhante, conforme a tradição cristã: a cura da mulher hemofílica. O destino havia introduzido em sua vida uma doença que impedia seu organismo de manter suas forças. Através do encontro com aquele que pôde curá-la, uma força de coesão, força plasmadora instalou-se em seu corpo, como se instalara na alma de Maria Madalena, a paz interior. Foram através das curas do espírito, da alma e do corpo que os três irmãos de Bethania se tornaram amigos íntimos do Cristo.
O primeiro acontecimento sempre designado como característico da quarta-feira santa foi o seguinte: ao estarem todos reunidos à mesa, Maria ungiu os pés do Cristo com um precioso óleo e os enxugou com seus cabelos. O evangelho de João relata que o perfume do sacrifício impregnou toda a casa.

Maria Madalena já fizera algo semelhante um ano e meio atrás, quando fora salva pelo Cristo. Também naquela ocasião, segundo o evangelho de Lucas, ela, espontaneamente, para manifestar sua gratidão, ungira os pés do Cristo e os enxugara com seus cabelos. Na introdução do relato sobre a ressurreição do Lázaro, o evangelho de João (11, 2) recapitula esta cena. 

O que é revelado pelo ato de Maria Madalena que o evangelho de Lucas, ao relatar a primeira unção, designa como grande pecadora e que talvez tenha realmente sido, conforme dizem as velhas tradições, uma prostituta perseguida por demônios no mundano balneário de Tibéria, perto de sua terra natal, Magdala! A unção é típico ato sacramental. A alma de Maria Madalena se ergue ao nível de praticá-lo. E, portanto, o Cristo, quando os outros declaram insensata esta atividade e se impacientam, pôde pronunciar palavras como se aceitasse o ato dessa mulher como um sacramento de morte, como uma extrema-unção. Na primeira unção ele dissera: "Calem-se. Ela amou muito e muito lhe será perdoado".

E adivinhamos como Maria Madalena conseguiu transformar as forças do amor natural, as forças terrenas do amor, que podem também desviar-se para a aberração, como conseguiu interiorizá-las e transformá-las em devoção, em intenso sentimento religioso e em capacidade sacramental de sacrifício.

Uma nota em falso interrompe o silêncio solene. Surge um personagem diametralmente contrastante com Maria Madalena. É um dos discípulos que perde o controle e a contenção ao ver o ato de Maria Madalena. É o Judas. Alega, na verdade, que seu protesto se baseia em considerações práticas e sociais. Diz que o dinheiro desperdiçado em óleo poderia ser dado aos pobres, aliviando muita miséria. Mas o evangelho de João já nos permite perceber nitidamente que os verdadeiros motivos de seu comportamento não são idênticos aos que ele propõe. Em realidade, é algo muito diferente que se passa em sua alma. 

O evangelho não o poupa, designa-o como ladrão. Vemos: justamente o aborrecimento sobre o ato de Maria Madalena dará ao Judas o último impulso para a sua traição. Excitadíssimo, há muito tempo espera pelo surgimento público de Jesus e pelo milagre político que ele acredita será a conseqüência desta aparição. Tudo o que leva ao silêncio da interiorização lhe parece, em sua impaciência febril, como sendo desperdício de tempo. Em Bethânia ele perde a paciência. Descontrola-se e sai para se juntar àqueles que perseguem o Cristo. O segundo conteúdo clássico da quarta-feira santa é a traição de Judas.
O motivo planetário do dia lança uma luz sobre as duas figuras tão contrastantes à mesa do jantar em Bethânia. Ambos, Judas e Maria Madalena, são figuras tipicamente mercuriais e têm mobilidade e temperamento. Possuem a qualidade de não serem enfadonhos. Ao seu redor sempre algo acontece. A roda das suas vidas não pára. Mas, Maria Madalena domina a intranqüilidade. Transforma-a em devoção, em paz, em capacidade de amor. 
A figura de Maria Madalena permite reconhecermos que a verdadeira e valiosa devoção só se instala quando é conquistada por uma alma vivaz, para a qual a paz não é mera inércia, mas vivacidade libertada, interiorizada. Maria Madalena foi muito manejada, sofreu muita coisa e atravessou muitas trevas. Mas, de toda intranqüilidade que houve em sua vida, flui agora sua intensa religiosidade. Será esta intensidade que a destacará em seguida entre todos os outros! Será ela a primeira a ter a visão do Cristo ressuscitado!
Judas é o outro homem mercurial. É, aliás, o tipo do homem irrequieto, que precisa sempre exercer uma atividade exterior. Alega querer agir em prol dos pobres. A atividade social, por boa e louvável que seja, é freqüentemente apenas um auto-entorpecimento. O impulso nem sempre reside em um autêntico ímpeto social, mas muitas vezes, na própria intranqüilidade interior. Muitas pessoas ficariam profundamente infelizes se fossem obrigadas a passar algum tempo inativas. Revelar-se-ia então, que a atividade social não é uma real produção interior, mas que elas cedem apenas a uma fraqueza inconfessada. Em Judas vemos este tipo de alma mercurial desembocar na mais tenebrosa fatalidade. Nele, a intranqüilidade nasce de um medo profundamente oculto. 

De modo semelhante ao que acontece nos adversários, nele rumoreja a intranqüilidade do medo essencial. Este é que acarreta sua traição do Cristo. A partir de tal estado de alma, o homem não pode ser devoto, não pode, em particular, amar. Um homem intranqüilo não é capaz de amar. O amor só é possível quando a alma já adquiriu a força da paz. E vemos assim nas duas figuras, de Maria Madalena e de Judas, dois caminhos que se separam como em uma encruzilhada. Um deles leva à proximidade do Cristo, o outro ao abismo da loucura, à tragédia do suicídio.

Marta, a outra irmã de Lázaro, é uma espécie de transição entre Judas e Maria Madalena. O evangelho de Lucas não relata em vão, em trecho anterior da vida do Cristo, a história de Maria e a de Marta. Marta é eternamente ativa. Não pode abster-se de empreender, a todo momento, algo de útil a serviço de alguém. Não podemos deixar de reconhecer a autenticidade de sua dedicação. Mas, tampouco, podemos deixar de ver a intranqüilidade física da qual foi curada, mas permaneceu existindo em sua alma. Maria que ouve em silêncio reverente é designada, em comparação com Marta, como aquela que escolheu a melhor parte.

As figuras da cena da quarta-feira santa nos mostram a encruzilhada que encontramos antes de podermos esperar sermos admitidos na esfera da quinta-feira santa. Diante do mistério sacramental, separam-se os caminhos. Judas é o homem sem culto. Ao se deparar com um ambiente de verdadeira devoção cultural, ele não fica só irrequieto, mas perde a contenção. Maria Madalena é a alma sacramental. Na noite seguinte, quando o sacramento se estenderá sobre o circulo de discípulos como uma cúpula celeste, revelar-se-á quem é mais Maria e quem é mais Judas.
Mercúrio, deus da cura no mundo greco-romano, mas também deus dos comerciantes e dos ladrões, aproxima-se do sol do Cristo. A cena em casa de Lázaro e de suas irmãs em Bethânia mostra como o deus da cura Mercúrio, pode ser curado pelo sol do Cristo.

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